Educação e sabedoria dos povos Indígenas em favor da proteção da Amazônia

por Dulce Moraes, Instituto Soka Amazônia

Durante muito tempo, o dia 19 de abril era celebrado como Dia do Índio. Mas, desde 2022, a data mudou de denominação para Dia dos Povos Indígenas.

A professora indígena, Sidneia Piratapuya, do povo Pira-tapuya, explica que a expressão “índio” sempre foi um grave equívoco criado dentro de uma visão estereotipada: “Somos vários povos. Foi uma luta de muitos anos para essa mudança. Essa data, o Dia dos Povos Indígenas, é uma conquista e soa muito reflexiva para que, principalmente, a sociedade não-indígena reconheça esses povos, sua existência e resistência”

A educadora alerta para o preconceito ainda existente em nossa sociedade, fruto da história colonizadora, que considera o indígena como selvagem, sem inteligência, sem alma, preguiçosos e incapazes. “É preciso ‘decolonizar’ esses pensamentos e mudar essa visão”, afirma.

A doutoranda em História e coordenadora do Movimento Estudantil Indígena do Amazonas, Isabel Munduruku, concorda. Para ela a mudança de nome da data faz jus a grande diversidade étnica e cultural dos povos originários no País. “Somos vários. Essa denominação diz respeito a uma reivindicação de existência que nós temos nesse país e da nossa própria ocupação”.

Isabel destaca a importância dos povos indígenas na preservação da própria floresta. “A gente tem afirmado que a Amazônia foi plantada pelos povos indígenas. E isso é uma coisa muito importante de se levar em consideração pois diz respeito da nossa relação com ela também”.

O fundador do Instituto Soka Amazônia, Daisaku Ikeda, em discurso durante a Conferência Internacional Amazônia no Terceiro Milênio: Atitudes Desejáveis, realizada em 1999, sinalizou a necessidade de harmonizar o desenvolvimento sustentável com a defesa da Amazônia como a Casa da Vida e considerando os saberes ancestrais dos povos nativos:

“A sua herança nos ensina que o céu, a terra, os pássaros, os animais e também o homem mantêm um perfeito inter-relacionamento e respiram igualmente como se fossem um único corpo. Eles nos ensinam a ver a Terra como uma única grande vida”, afirmou Ikeda.

O Instituto Soka Amazônia, organização fundada por Ikeda, atua pela conservação e educação ambiental. Entre suas iniciativas estão plantios de espécues nativas acompanhado de troca de conhecimentos com comunidades indígenas e ribeirinhas.

Como organização filiada à Soka Gakkai e Carta da Terra Internacional atua dentro dos valores da Carta da Terra de cuidado com a Comunidade da Vida e pela Justiça Social e Econômica.

A proteção da Amazônia e de sua biodiversidade, é tratada pela instituição sob o necessário olhar de respeito à dignidade da vida.

Na semana comemorativa ao Dia dos Povos Indígenas,  a coordenadora do Movimento Estudantil Indígena do Amazonas, Izabel Munduruku, e a educadora indígena  Sidneia Piratapuya, representante do Fórum de Educação Escolar e Saúde Indígena do Amazonas, compartilharam suas vivências e visões sobre o real sentido da proteção da floresta para os seus povos e a importância e os desafios das novas gerações indígenas quanto à educação. Leia a seguir: 

Isabel Munduruku, doutoranda em História pela UFAM  e coordenadora do Movimento Estudantil Indígena do Amazonas

Como os jovens indígenas estão se engajando para a valorização da sua identidade ética e a cultura de seu povo?

No Movimento dos Estudantes Indígenas do Amazonas a gente tem reforçado muito isso e a importância de nossa presença nas universidades. Temos pautado o conhecimento tradicional dos povos indígenas junto com o conhecimento ocidental, de maneira intercultural. 

E é uma interculturalidade crítica onde a gente, a partir do conhecimento ocidental, articula formas de aplicar esse conhecimento tradicional que a gente aprendeu desde criança nas comunidades. Esses conhecimento e  culturalidade podem promover um bem viver coletivo, não só os povos indígenas, mas também para outros povos que habitam a Amazônia.

Como se dá esse resgate às origens por esses jovens e de que maneira contribuem para transmissão desse conhecimento?

Nossa presença dentro do espaço acadêmico é de profunda grandiosidade porque somos nós que estamos escrevendo e reescrevendo as nossas histórias e estamos reafirmando nossas identidades através desses escritos. Estamos, portanto, refazendo processos que, muitas vezes, nos colocam no apagamento.

A presença de estudantes indígenas nas Universidades, de uma certa maneira, está fazendo uma salvaguarda na proteção da memória dos povos indígenas. Temos escritos nossas teses sobre nossas culturas e as nossas tradições e como essas tradições também são tecnologias para proteção da qualidade de vida da Amazônia.

Como garantir a proteção da Amazônia na perspectiva dos povos indígenas ?

A proteção da Amazônia deve ser pensada de maneira articulada não enquanto uma responsabilidade que os povos indígenas tenham que garantir, mas entender a importância que os povos indígenas têm na proteção, tendo em vista que essa é uma missão e um dever de povos indígenas, dos povos ribeirinhos, de quilombolas, dos não-indígenas e da sociedade civil como um todo. Isso porque a Amazônia é garantia da nossa biodiversidade, do nosso território e da própria qualidade de vida das populações de todo o território brasileiro.

Como os povos indígenas compreendem a floresta e o território?

A nossa relação com o território é recíproca porque a gente não compreende o território enquanto um meio fora da gente. Nós somos o território e o território somos nós. 

Desta maneira, no momento em que o território está sendo explorado ou maltratado nessa exploração dentro da lógica de capitalização – através da exploração do ouro, da extração ilegal  de madeira e tantas outras formas de explorar o território – a gente entende como a exploração do nosso próprio corpo, enquanto corpos indígenas. Então a relação que temos com o território é uma relação de vida e de compreender enquanto parte do próprio ecossistema.

O que, na sua visão, tornaria mais efetivas as iniciativas de proteção ambiental?

A gente também tem uma visão muito crítica como se pensa muitas vezes a lógica da proteção ambiental como recurso natural. A gente não lida com o território ou com a Amazônia como recurso, pois quando se pensa em recurso automaticamente já está partindo para uma premissa de capitalização. E isso é muito problemático. 

É preciso tratar a partir dessa relação recíproca, onde o território garante a vida e a gente também tem essa responsabilidade de garantir a vida do território.

Sidneia Piratapuya, do povo Pira-tapuya, falante da língua indígena Tukano.  É professora da rede escolar pública e especialista em gestão escolar

Na visão indígena o que é proteger a Amazônia?

Para nós indígenas e, para mim como Pira-tapuya, proteger a Amazônia é proteger nossa terra. E não só a nossa terra, mas todas as vidas e natureza que estão dentro do território chamado Amazônia. Para nós defender é amar essa Amazônia; é conservar e manter o Rio Amazonas e todos os afluentes principais, o rio Solimões, o Rio Madeira, o Rio Negro, o Rio Japurá. 

Todos esses afluentes importantes que, na nossa visão, estão sendo contaminados pela exploração de minérios trazidos por grandes empresas que vão destruindo e contaminando não só a água que bebemos, mas também a terra e as pessoas que têm essa ligação com essa terra e com essa água.

Por isso nossa defesa pela Amazônia. Mas, defender não é só pelas pessoas que vivem na Amazônia, é sim pelos que vivem no Brasil e no mundo todo, porque precisa desse ar. Porque em outros países não tem mais uma floresta original e intacta. Então defendemos por tudo isso, por todas essas vidas do mundo todo.

Pela sua experiência, como professora e aluna indígena, qual deve ser o diferencial da educação indígena?

A política de educação escolar indígena é muito importante e o Estado brasileiro precisa entender sua importância. Porque nós indígenas não precisamos só conhecer as coisas da sociedade branca, precisamos fortalecer nossa cultura e os nossos conhecimentos tradicionais e fortalecê-los e também dominar esses conhecimentos da sociedade não-indígena e, assim, nos interagir com a sociedade.

Como a educação pode ajudar na valorização da identidade indígena?

Se o jovem se apegar só aos conhecimentos da sociedade não-indígena, enfraquece nossa gente e perde nossa língua e nossa cultura. Daí a importância que a educação escolar indígena seja implementada nas comunidades evitando que esses grupos étnicos saiam de suas aldeias e não voltem. 

Nos deparamos com estudantes que saem das aldeias para fazer faculdade em outras localidades e criam problemáticas, porque eles saíram dos seus territórios para se deparar com outras realidades que não a sua. Essa também foi minha realidade. É nesse sentido que a educação diferenciada e de qualidade é importante para nós.

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Natureza como aprendizado, a lição do povo Kambeba

Instituto Soka Amazônia conversou com gestor da Escola Indígena Kanata, professor Raimundo Kambeba, sobre a experiência da educação intercultural
Raimundo Kambeba, gestor da Escola Indígena Kanata

Neste mês em que se comemora o Dia Mundial da Educação Ambiental*, o blog do Instituto Soka Amazônia compartilha entrevista especial com o educador Raimundo Kambeba, gestor da Escola Indígena Kanata.

Graduado em Pedagogia Territorial Indígena pela Universidade Estadual do Amazonas (UEA) e Mestre em Educação, pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Raimundo Kambeba fala da experiência da educação indígena para preservação da natureza e da identidade do seu povo.

Mas, quem são os Kambeba?

Também chamados de Omágua, ou povo das águas, os Kambeba são conhecidos por suas canoas, resistentes e de navegação eficiente.

Presentes também no Peru, há muito tempo deixaram de ali se identificar como indígenas devido à violência e à discriminação que existe desde o século XVIII por parte de não indígenas. Outra característica que os diferenciava de outros povos indígenas, eram suas vestimentas em algodão[i].

*26 de Janeiro

Dia Mundial da Educação Ambiental

Data instituída na Carta de Belgrado, em 1975, elaborada durante o Seminário Internacional sobre Educação Ambiental, com o objetivo de conscientizar sobre a necessidade de proteger o meio ambiente através da educação.

Na Amazônia brasileira, os Kambeba estão localizados nas regiões do alto Solimões e baixo Rio Negro.  Na cidade de Manaus, a comunidade Kambeba está estabelecida na região Três Unidas, cerca de um quilômetro da capital em linha reta

De acordo com o professor Raimundo, esse grupo veio do alto Solimões até o baixo Rio Negro em busca de melhores condições de vida, de educação, saúde, economia e organização social.

Fonte: Site Povos Indígenas do Brasil/Instituto Socioambiental

Nos últimos anos, a comunidade Kambeba de Três Unidas vem estabelecendo parcerias, entre as quais plantio de mudas com o Instituto Soka Amazônia, com o enfoque na saúde, educação intercultural, e economia voltada à interculturalidade.

As parcerias, segundo o professor Raimundo, auxiliam na conquista da melhoria da qualidade de vida para a comunidade e nas condições de preservação do ambiente em que habitam. E ressalta: nessa questão é fundamental que se conheça a economia indígena e a economia não indígena.

Comunidade Kambeba e Escola Indígena Kanata.

Aprendendo com a natureza

“Para nós, povos indígenas, a Natureza é nossa mãe. A Terra é a nossa mãe, é onde a gente vive, é onde a gente está no dia a dia. É ela que nos dá saúde, oxigênio limpo de qualidade para a gente viver. Então, é a luta que nós, povos indígenas temos”, explicou professor Raimundo.

Na escola indígena, o respeito ao conhecimento dos mais velhos é valorizado como forma de preservar sua cultura. As crianças aprendem sobre o conhecimento ancestral e tradições, como as danças, músicas e gastronomia indígenas, além da arte do seu povo, como as pinturas, produção de peneira e outros utensílios de caça e pesca. Todo esse aprendizado é realizado na escola indígena, sendo os mais velhos os professores e especialistas no conhecimento.

Trajetória como educador

Raimundo Kambeba começou a atuar como professor aos 14 anos de idade. “A comunidade me apoiou para ser professor. Eu tinha estudado até a 5ª série. Comecei a estudar e dar aula. Mas, por eu ser menor de idade, a Secretaria de Educação, daquela época, não aceitaria me contratar.  Assim, meu pai foi contratado e eu trabalhava com ele, dando aula”, contou.

Raimundo relembra que, no início, eram 30 crianças para alfabetizar e ele só tinha uma ideia: valorizar a cultura de seu povo, revitalizar essa cultura, reavivar a língua, imortalizar os conhecimentos tradicionais.

(*) Tuxawa é uma liderança política dos povos indígenas. Do tupi, o termo tuxaua significa “aquele que manda”. Seria o que, em português, é conhecido como cacique.

Nesse percurso, por ser indígena, ele sofreu discriminações, mas a cada desafio renovava sua determinação e os obstáculos só serviram para que se fortalecesse mais e mais.

Hoje, 29 anos depois daquela primeira turma de 30 alunos, Raimundo é o vice tuxawa* reconhecido e querido pela comunidade, onde atua com seu pai.

“É uma luta muito grande que a gente tem como povos indígenas, de estar conseguindo lidar com todas essas situações. Nós somos as lideranças e buscamos por dias melhores para os povos indígenas”, diz Raimundo.

Educação intercultural

O acadêmico e professor, Raimundo Kambeba, ressalta a importância das parcerias com instituições que valorizam a interculturalidade, compreendendo as diferenças entre os indígenas e não indígenas como possibilidade de enriquecer ambas as culturas.

Para ele, é importante conhecer o que é educação indígena e o que é educação escolar não indígena. “O que é cuidar da natureza para o índio? O que é cuidar da natureza para o não indígena? O que a saúde indígena propõe para os povos indígenas e o que a saúde não indígena propõe para os não-índios. Até os governantes também”, enfatizou.

Todas essas reflexões fazem com que os povos originários se fortaleçam em conhecimentos e sabedoria; as parcerias contribuem para que essas etnias busquem maior autonomia e obtenham melhoria na qualidade de vida em suas comunidades.

Os Kambebas são uma das mais expressivas etnias a se projetar rumo a um futuro em que indígenas e não indígenas possam compartilhar espaços e saberes como irmãos, membros de uma mesma família humana.

Ao longo de 2023 teremos oportunidade de publicar neste blog uma série de matérias abordando diferentes aspectos do povo Kambeba. Acompanhe e nos siga nas redes sociais.